Já ouviu falar em responsabilidade objetiva?
- Revista SOUL Digital
- 4 de ago. de 2021
- 5 min de leitura
Pois é, deveria.
Ainda surpreende a quantidade de gente que nunca ouviu falar em ‘responsabilidade objetiva’. Tudo bem que seja um conceito próprio do Direito, mas o caso é que as consequências são tão grandes que o instituto deveria ser mais difundido. Por associações, sindicatos, universidades etc.
Primeiramente, cabe a ressalva de que não se trata de uma invenção brasileira. Ao contrário, o país importou o conceito de sistemas jurídicos avançados. Essa observação acaba sendo importante para aqueles que quiserem implicar com sua função.
Haverá responsabilidade civil, de indenizar alguém, quando se causa um dano. Pode ser uma colisão de automóvel, um atropelamento, um serviço mal feito que gerou um acidente, uma venda de produto com problema etc. Esta obrigação pode estar atrelada a um sistema de responsabilidade objetiva ou subjetiva.
A responsabilidade objetiva se contrapõe à responsabilidade subjetiva. Esta, a subjetiva, diz respeito ao sujeito que pode agir, ou não, com culpa. Logo, a culpa será um fator de análise no caso concreto. Se o causador do dano tem culpa, deve indenizar, se não tem, não indeniza.
Já a responsabilidade objetiva, em regra, impede a discussão de culpa, ou seja, o responsável pelo dano pagará, mesmo que não tenha qualquer culpa no evento. E mais, não poderá, no processo judicial, querer discutir o fator ‘culpa’ – se teve ou se agiu com culpa ou não-. Essa discussão não será aceita no processo judicial.
Isso é assim no Direito evoluído dos países democráticos. E a justificação lógica é que em toda relação humana, social, constituída por polos não iguais – um polo forte e um polo
fraco-, o Direito buscará compensar o polo fraco da relação, criando mecanismos que atendam, compensando, este polo fraco.
Há essas compensações no direito de família, no trabalhista, no empresarial, no civil, no do consumidor, no constitucional e em diversas relações humanas reguladas pelo Direito.
Mas o que é, juridicamente, polo forte e polo fraco? Entre homem e mulher há esta diferença? Claro que há. Basta reparar que só existe delegacia de proteção da mulher, não existe de proteção ao homem. Outra coisa é que nos exames físicos para concursos públicos a mulher também é compensada, ou seja, seu grau de esforço é menor que o grau de esforço do homem. Não há privilégio ou discriminação aí, mas mera compensação, lógica.
São diversos os exemplos de polo forte e polo fraco no Direito. Todos eles, obviamente corretos
por si sós. Pais e filhos menores; alimentante (quem paga pensão) e alimentário (quem recebe); Estado e cidadão; fornecedor de produtos e consumidor; patrão e empregado; pessoa não deficiente e pessoa deficiente; automóvel em via pública e transeunte; ônibus e carro; motociclista e transeunte; jovem e idoso; e tantos outros.
Se um bicicletista atropelar um transeunte; um mero atleta corredor atropelar um idoso que esteja andando na rua; um automóvel atropelar um pedestre, a regra será, em todos esses casos, o primeiro ter que indenizar o segundo sem poder discutir culpa, em razão da responsabilidade objetiva. Havia um dever de cuidado que não foi observado pelo polo forte.
O mesmo se dirá de uma mera colisão entre um ônibus de linha e um veículo particular. A empresa de ônibus é obrigada a ressarcir todo o prejuízo do condutor particular sem poder discutir de quem foi a culpa no acidente. Primeiro paga. Depois, se quiser e puder, pode tentar receber do seu motorista o prejuízo.
Há uma hipótese jurídica de a culpa entrar em alguns casos – não todos!- da responsabilidade objetiva. Chama-se ‘culpa exclusiva da vítima’. Será, o caso, por exemplo, de um condutor de veículo colidir na traseira de um ônibus. Porém, isso não vale para todos os casos. Esta mesma colisão se se der numa estrada em que se paga pedágio, em que o carro do motorista colidir com um caminhão da empresa administradora da via, o direito entenderá que houve deficiência de sinalização da empresa e nem a ‘culpa exclusiva da vítima’ afastará o dever de a empresa reparar integralmente os danos por parte da empresa.
Outro exemplo clássico do direito é a responsabilidade do pai quando empresta o veículo ao filho, e este atropela alguém; ou do patrão quando manda seu empregado buscar uma encomenda, no veículo da empresa, e ele atropela e alguém. Em ambos os casos o patrimônio do pai e da empresa serão alcançados pela responsabilidade objetiva, e não adiantará nada eles tentarem dizer que não atropelaram ninguém, foi o filho ou empregado.
As disposições legais sobre a responsabilidade objetiva começam na Constituição da República, no artigo 37, parágrafo 6º que diz: § 6º “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Observe o verbo em seu modo indiscutível e obrigatório: ‘responderão’. Veja que não é ‘poderão responder’. Assim, qualquer dano que uma viatura de polícia, carro dos bombeiros, veículo militar ou de prefeitura causar a alguém, o ente federativo respectivo – união, estado ou município- é obrigado a pagar, sem poder discutir culpa. Há quem não ‘acredite’ nisso, mas aí já será uma questão de crença, e essa atividade é uma opção pessoal.
Também o Código Civil, mais claro e fulminante ainda, no artigo 927, reza: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Veja como a responsabilidade objetiva se expressa: ‘independentemente de culpa’.
O Código de Defesa do Consumidor, nos artigos 12 e 14 também contemplam a responsabilidade objetiva. Artigo 12: ‘O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores ...’, e o artigo 14, o mesmo: ‘O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores...’
Todas as compensações jurídicas saídas da Constituição da República de 1988, como essas de polo forte e polo fraco são avanços do Direito não apenas brasileiro.
A conclusão a se tirar é que, por exemplo, dar uma simples carona a alguém; emprestar o automóvel a um conhecido; ou causar, ainda que sem querer, um dano a um terceiro, pode sair muito caro para a pessoa, uma vez que a ligação que se tem, de propriedade do veículo, atrai responsabilidade civil – financeira- pelo mero fato de se ser o dono do bem.
Por outro lado, a notícia ‘boa’ é que, para quem sofre o dano, tem a seu favor certa preferência no trato da lei visando à sua proteção.
Há outros institutos compensatórios no direito, todos buscando certa equiparação entre os polos, como a inversão do ônus da prova, que facilita a prova de um fato para o empregado em relação à empresa; para o consumidor em relação ao fornecedor; para o cidadão em relação ao Estado; e assim por diante, sempre que presumidamente houver uma relação jurídica desigual.
Patrões domésticos, rurais ou empresários veem-se na mesma situação de cuidado. O ambiente laboral precisa ser protegido em relação a quem nele convive e trabalha, sob pena de o empregador ter que indenizar em todas as situações.
Numa sociedade historicamente desigual como a brasileira, a responsabilidade objetiva é um ganho social importante, impondo atenções e cuidados a quem empresaria, dirige, emprega e mesmo cuida e educa filhos.
A ‘ética’ ou visão de mundo do Direito em si, como ele vê e regula as relações, é uma boa e confiável forma de cultura social. A cada ‘período’ de cultura, o Direito também muda e ao longo dos séculos deu mostras nítidas de evolução coerente, nunca de involução.
Há que se ‘confiar’ no Direito, até porque não se tem como desrespeitá-lo sem infringir a lei, aí dois conceitos muito próximos. Interessar-se minimamente pelos assuntos jurídicos acaba sendo um bom – e seguro- modo de vida. Evita dores de cabeça, algumas sérias.
https://observatoriogeral.com/2014/01/02/bateram-carro-e-onibus-a-empresa-de-onibus-nao-pode-discutir-culpa-paga/